sexta-feira, 12 de março de 2010

quase caso

Todos os dias estavam no café. Onde mais poderiam ter uma paixão olhada, como se estivessem apenas a passar tempo um diante do outro?
Ela tinha começado a lá ir porque durante uma semana não tivera televisão e não conseguiria suportar a tarde se não visse o programa das três.
Ele vira-a lá nessa semana e quando deu por si tinha passado um quarto de hora sem tocar no café.
Já com a televisão arranjada, ela continuou a ir ao café. Ficava sempre na mesma mesa, à sombra mas a ver a rua.
Ele mudou a hora de almoço, no trabalho, para poder estar em paz no café, a tentar olhar para ela com o máximo de discrição que o sol a bater na cara permite.
Quase nunca diziam nada um ao outro, até porque sempre que diziam algo, parecia-lhes que o outro reagia com uma cara estranha, à qual faziam eles próprios uma cara triste e incomodada que induzia o outro em erro.
Moeram tanto discurso que se tornavam um pouco azedos no resto da tarde, mas nunca, nunca interpelaram o outro a sério. Ela ficava sempre na sombra, a fingir que ainda ligava à televisão, colocada num suporte por cima dele. Por vezes arranjava as unhas enquanto esperava uma abordagem dele. E ele lá continuava, por vezes com caretas muito estranhas mas recusando-se a mudar de mesa.
Demorou muito café, mas entenderam que nunca iam chegar um ao outro. Ela desistiu por uns tempos de ser infiel ao marido. Ele recebeu o óbvio diagnóstico de um minúsculo cancro da pele na bochecha, onde apanhou todo aquele sol das três da tarde.

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